segunda-feira, 16 de março de 2009

REFLEXÕES DOMINICAIS SOBRE ÉTICA E CIÊNCIA



A ciência precisa de liberdade para progredir. É difícil imaginar que idéias possam fluir em uma realidade cheia de obstáculos morais e censuras legislativas. A ciência, aqui, não difere de cultura em geral: é difícil também imaginar que a produtividade cultural possa sobreviver apenas clandestinamente, se bem que esse foi e é o caso em ditaduras militares ou religiosas. A censura e a rigidez moral castram a criatividade, mas não conseguem destruí-la.
Por outro lado, se a ciência serve à sociedade, ela deve prestar contas ao cidadão. Afinal, ao menos em pesquisa mais básica, quem paga a conta são os governos, a partir da coleta de impostos. É, como quem paga os impostos é o cidadão, a produtividade científica é financiada, em grande parte, pela sociedade.
Claro, existe também a pesquisa financiada diretamente pela indústria, com fins lucrativos. Ou a pesquisa financiada pelo governo com fins militares. Com o desenvolvimento acelerado da tecnologia nos últimos 20 anos, essa linhas divisórias têm se tornado cada vez mais invisíveis. Um físico que desenvolve um novo tipo de liga metálica pode estar interessado em suas propriedades a baixíssimas temperaturas (a ciência básica, pois baixas temperaturas não são viáveis comercialmente), ou na sua utilização em mísseis intercontinentais (ciência bélica). A liga metálica é a mesma, mas põe servir a propósitos completamente distintos.
Aqui surge um dilema para o cientista: até que ponto sua obrigação profissional deve interferir em sua atividade criativa? Será que o físico que trabalha em uma universidade, sabendo que sua novo liga metálica pode ser usada em mísseis, deve divulgar seus trabalhos?
Para citar um exemplo histórico, Leonardo da Vinci construiu várias armas de guerra para o seu patrono. Mas recusou-se a divulgar seus planos para a construção de um submarino, pois sabia que seu uso, aliado à perversidade do ser humano,provocaria mortes horrendas sob as águas. Da Vinci não queria ter seu nome associado a tal máquina de destruição. Hoje, apenas um submarinos da Marinha norte-americana é capaz de carregar 24 mísseis nucleares de alcance intercontinental, suficiente para destruir uma boa fração da vida na Terra.
A lição dessa história é clara: nenhuma invenção permanecerá “escondida” por muito tempo. Alguém acabará por redescobri-la mais cedo ou mais tarde. Os norte-americanos ficaram completamente boquiabertos quando os soviéticos detonaram uma bomba atômica logo após o fim da Segunda Guerra, seguida de um bomba de hidrogênio.
O Projeto Genoma, que envolve centenas de cientistas espalhados pelo mundo, compete com laboratórios privados na corrida pelo mapeamento do genoma humano. A biotecnologia levanta uma série de novos desafios éticos, questões que a sociedade precisa confrontar. Este mês, um trio de médico anunciou em Roma que a clonagem de seres humanos é uma questão de tempo. E não muito. Várias pessoas têm uma verdadeira aversão à idéia de que será possível construirmos cópias de um ser humano. Além disso, com a manipulação direta de gene, será também possível “encomendar” uma pessoa, como encomendamos um terno no alfaiate. Essa cor de olhos, essa altura, essa cor de pele, um bom atleta, Q.I alto.
A primeira reação é: “Mas que absurdo! Isso deve ser proibido!”. Mas essa reação é inútil. Porque a pesquisa irá continuar, proibida ou não, do mesmo modo que jornalistas, músicos e cineastas continuam a trabalhar sob regimes de ditadura. Países irão adotar políticas diferentes, alguns mais liberais do que outros.
Veja o exemplo recente do Reino Unido, autorizado a pesquisa que usa embriões para buscar a cura de várias doenças. Portanto, fora laboratórios clandestino, os cientistas podem sempre emigrar para países mais liberais. É fácil criticar os cientistas pela sua “ganância”, por esse apetite de querer sempre ir em frente. Mas essa é justamente a força da ciência. Sem essa curiosidade, ela entra em estagnação. O que a sociedade deve exigir dos cientistas é um compromisso moral com a verdade, um franco diálogo em que as repercussões das pesquisas são discutidas abertamente. É hipócrita culpar o inventou da pólvora pela morte de todas as pessoas em guerra. Somos nós que vamos à guerra, nossos governos, nossos soldados, nossos cientistas.

25/3/2001

Gleiser, Marcelo
Micro Macro – reflexão sobre o homem, o tempo e o espaço
São Paulo : Publifolha, 2005.

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